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Gênero e raça na história da Psicologia


Publicado em: 24 de novembro de 2016
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

O CRP SP, por meio do Grupo de Trabalho História e Memória da Psicologia, lança dois documentários tratando das relações étnico-raciais e de gênero   “Não se pode olhar uma ciência e uma profissão desvinculada do lugar onde ela está”. A frase da psicóloga Odette Pinheiro – que ocupou a presidência do Sindicato de Psicologia no pós ditadura, tirando do cargo um homem militar – é uma das que abre um dos mais novos vídeos do CRP-SP, que trata de gênero e sexualidade na história da psicologia. O outro vídeo lançado trata da profissão e das relações étnico-raciais. Os dois documentários são uma iniciativa do Grupo de Trabalho (GT) História e Memória da Psicologia em São Paulo.   “Como gênero e raça foram e são retratados na psicologia?”. Para Ilana Mountian, coordenadora do GT e da produção dos vídeos, é essa a abordagem principal de ambos. “Em grande parte da história da psicologia esses temas são invisibilizados ou aparecem de forma a reproduzir desigualdades”, considera, ao lembrar, por exemplo, que a homossexualidade era vista como uma doença e apenas em 1999 uma regra clara proibiu essa abordagem . “Depois de várias lutas e debates a psicologia começa a rever a sua epistemologia, seu entendimento sobre as relações raciais e de gênero e a promover posicionamentos e práticas de enfrentamento a essas opressões”, descreve.   “A ideia é garantir um registro do que foi feito, recuperar essa memória e, a partir do que está acontecendo agora, produzir uma contextualização desses temas, refletindo sobre a função social das/os psicólogas/os”, avalia Alessandro de Oliveira, integrante do subnúcleo de relações étnico-raciais do CRP-SP.   A história do Brasil – e da psicologia brasileira como parte disso – é marcada por sangue. “Estamos falando de uma integração nacional baseada na violação de mulheres negras pela Casa Grande”, atesta a professora Vera Paiva no vídeo de gênero. “Todo mundo sabe que racismo existe”, constata Maria Lúcia da Silva, psicóloga e integrante do GT Racismo e Saúde Mental do Ministério da Saúde, ao abrir o documentário sobre as relações étnico-raciais: “Mas há uma recusa em pensar o Brasil a partir da sua história, fundada na violência contra negros e indígenas. E a gente sabe que a psicologia, no primeiro momento, faz um alinhamento com as teorias eugenistas”.   Da reprodução ao enfrentamento   Com cerca de 50 minutos de duração, imagens de arquivos e entrevistas, o documentário sobre gênero e sexualidade faz um apanhado histórico das lutas feministas. O telespectador começa na primeira onda do feminismo (final do século 19 e início do 20), marcada pela luta do direito ao voto, o acesso à escolarização moderna e ao mercado de trabalho e passa à segunda onda do feminismo (a partir de 1960), em que os debates da autonomia do corpo e das liberdades sexuais ganham força, período em que chega a pílula anticoncepcional. Ao recordar a queima de sutiãs nos EUA, ato que se tornou um dos marcos da segunda onda, a psicóloga e coordenadora da Sempreviva Organização Feminista (SOF) Nalu Faria descreve como, muito mais que lingeries incendiadas, a ação foi “a queima daquilo que aquelas mulheres consideravam símbolo de uma feminilidade opressora a elas”.   A década de 1970 foi de grande fortalecimento do movimento feminista no Brasil, que aglutinava pautas alinhadas com as mobilizações internacionais – como as relacionadas à sexualidade, autonomia, divisão sexual de trabalho, etc – com as lutas pelo fim da ditadura militar, contra a carestia, por creches.   Os temas não eram, no entanto, engolidos tranquilamente pelos companheiros homens, mesmo dentro da esquerda. “Nenhuma das tradições marxistas conseguia aceitar que gênero era uma categoria relevante”, observa Vera Paiva. A professora e psicoterapeuta Suely Rolnik analisa como “tudo que é da ordem de uma resistência micropolítica, como está reduzida ao sujeito, permite a confusão entre subjetividade e indivíduo. Então diziam que tudo que parte da subjetividade para construir realidade é individualista. Se é individualista é burguês. E ao criar essa rechaço se reforçava e legitimava justamente o que é próprio da subjetividade burguesa”.   Por que a psicologia se tornou uma categoria com tantas mulheres? A professora Ana Bock destaca que Fulvia Rosenberg (1942-2014) talvez tenha sido a primeira pessoa a refletir sobre isso ao publicar, nos anos 1980, o artigo Por que somos tantas mulheres? “Ela aponta como a profissão cabia bem a um específico perfil feminino, não só pelo imaginário social do cuidar que está posto para nós, mas também por uma característica de organização do trabalho nessa profissão que permitia às mulheres a jornada dupla de trabalho”, descreve Bock.   Ainda que a partir de determinado período tenha se tornado majoritariamente uma profissão de mulheres, a psicologia em muito levou adiante o papel que a medicina e a psiquiatria tiveram em patologizar comportamentos não aceitos socialmente. “Muita teoria se construiu aproximando a mulher – principalmente aquela desviante do seu papel de boa moça – da ideia de loucura, insanidade, histeria, uma pessoa não capaz de controlar suas emoções. Da mesma forma em que se aproximou a ideia da homossexualidade a uma patologia”, aponta Ilana.   “Não queríamos ficar em silêncio”   É também nos anos 1980 que se espalha a epidemia da AIDS, supostamente associada – por meio de uma construção discursiva e impregnada no imaginário social – a uma doença exclusiva de quem tinha orientação sexual homossexual, potencializando ainda mais a discriminação homofóbica. “Quando a gente não esquece a gente não repete”, salienta Vera Paiva, ao recordar de uma votação em 1989 em que a congregação proibiu a pesquisa em AIDS no Instituto de Psicologia da USP. “No final dos anos 1990 é o movimento gay que move a psicologia. E aí? Vocês vão ficar em silêncio?”, relata Bock: “Não queríamos ficar em silêncio”.   Chamado parecido chegou ao Sistema Conselhos referente às demandas dos indígenas e dos movimentos negros. “Preconceito racial humilha, humilhação social faz sofrer” foi o lema da primeira campanha de Direitos Humanos do CFP (Conselho Federal de Psicologia) que tratou da questão racial em âmbito nacional, no início dos anos 2000. Idealizada por Marcus Vinicius de Oliveira, então presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP, a campanha foi lançada no Fórum Social Mundial, na presença de integrantes de comunidades quilombolas da região e do movimento negro de Porto Alegre.   Desde a abolição da escravatura, “a intelectualidade brasileira se utiliza das teorias raciais europeias para garantir a fixidez, a não mobilidade das classes”, sintetiza a psicanalista Lia Novaes. “A branquitude aparece como forma de perceber o mundo. Logo, isso aparece também na ciência psicológica”, aponta a psicóloga e pesquisadora Lia Vainer, que coordenou o vídeo Psicologia e relações étnico-raciais. Autora do livro Entre o encardido, o branco e o branquíssimo – branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo, Vainer reitera que “o racismo não é simplesmente um legado da escravidão, mas algo legitimado diariamente”.   Em 2002 o CFP aprovou a Resolução 018, que afirma o posicionamento de combate ao racismo enquanto princípio ético da atuação  profissional. Dois anos depois aconteceu o primeiro seminário Subjetividades e Povos Indígenas, quando constituiu-se um GT em São Paulo para fomentar eventos, debates e diretrizes, em produção conjunta com antropólogos e lideranças indígenas. Em 2012, como fruto de ciclos de oficinas realizadas nos anos anteriores, o CRP SP lançou o livro Psicologia e povos indígenas.   “O primeiro passo é visibilizar que essas opressões existem”, opina Ilana. “E que a psicologia considere essas relações, suas intersecções e seus efeitos na subjetividade. O que significa ser mulher no Brasil? O que significa ser travesti? E ser mulher e pobre? Travesti e negra?”, reflete. “Nos processos educacionais, na elaboração de políticas públicas, no acesso a saúde, no reconhecimento das pautas apontadas pelos movimentos sociais”, elenca Alessandro, ao concluir que “há muito o que a psicologia pode contribuir no enfrentamento às desigualdades”.