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# RESPECTRO não é benefício é direito: Dia Mundial da Conscientização do Autismo


Publicado em: 2 de abril de 2020

A Organização das Nações Unidas - ONU deliberou em 2007, que a partir do ano seguinte, o dia 2 de abril fosse a data na qual o planeta se dedicaria a Conscientização do Autismo. Desde então, anualmente a comunidade envolvida com a causa, escolhe um tema de ênfase para a campanha, em 2020 o assunto escolhido foi “Respeito para todo o espectro” representado pela hastag #RESPECTRO.

Estudos internacionais indicam um aumento significativo de pessoas que se enquadram dentro do denominado espectro autista. Estima-se que sejam atualmente 70 milhões de autistas no mundo. Não é possível precisar a quantidade de autistas no Brasil, no entanto, em julho de 2019 foi sancionada a lei nº 13861/19 que passa a incluir  no Censo demográfico informações que visam mapear a quantidade dessa população no País, a comunidade “azul”, forma  como se denomina o grupo de autistas e seus familiares, que comemora esse feito, pois acredita que tais dados poderão  colaborar com a indicação de políticas públicas que os contemple.

O Transtorno do Espectro Autista - TEA, manifesta-se na infância e é reconhecido tipicamente pelas diferenciadas dificuldades manifestas na tríade  comunicação, socialização e interação social. Concomitantemente ao crescimento de diagnósticos há também um maior interesse pela comunidade científica em investigar o assunto, abordando as especificidades relacionadas ao autismo dentro dos mais diversos contextos e áreas de atuação. A Psicologia tem se debruçado sobre o tema com o objetivo de entender esse complexo fenômeno individual e social a partir das mais diversas linhas teóricas, refletindo sobre os entraves que impedem ou limitam as relações sociais dessas pessoas e seus familiares. Localiza-se considerável material produzido versando sobre a escolarização, as comorbidades, as causas, bem como sobre as tecnologias que poderão otimizar seu desenvolvimento, direcionando a atuação de profissionais. Encontram-se estudos que pretendem descrever e explicar a problemática, pela visão positivista, estruturalista e adaptacionista de desenvolvimento, e há estudos com ênfase na Psicologia crítica pautada nos aspectos sócio históricos para o entendimento do desenvolvimento humano. O fato é que, independentemente da abordagem teórica que se abrace, nós psicólogos, estamos implicados com a ampliação de conhecimento e a conscientização de suas necessidades para atender as demandas com a qualidade e respeito merecido a qualquer ser humano.

Há algumas crenças generalizadas sobre o TEA  que como fantasmas, os patologiza e os distancia da vida em comunidade, entre essas poderíamos citar como exemplo corriqueiro o entendimento de que todo autista é incapaz de adaptar-se a mudança de rotina, que todos tendem ao isolamento social, que são auto e hetero agressivos, que têm dificuldades em expressar sentimentos, que são limitados na aprendizagem das regras sociais e na interação social.  Tais generalizações nos faria supor que em tempos de quarentena, a não ser pela mudança de rotina, os autistas estariam bem satisfeitos em suas casas isolados do ambiente social.
Considerando o lema proposto por William Rowland em 1986  "NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS”, ninguém melhor do que os autistas e seus familiares para nos contar sobre suas especificidades nos modos de ser e viver, e como estão enfrentando o confinamento necessário para o enfrentamento da pandemia. Conversamos com alguns familiares e autistas e perguntamos como as mudanças na rotina estão impactando suas vidas, encontramos como situação comum a dificuldade de adaptação a nova rotina, mas é surpreendente como essas pessoas relatam a falta do convívio social. Fabiana tem um filho de 8 anos e nos conta  sobre suas dificuldades:

 - Está muito difícil [...] porque quebrou a rotina dele na escola e nas terapias. [...] Ele anda muito agitado, não está dormindo direito e não estamos conseguindo que ele faça as atividades ... em casa. Eu tento explicar para o E. que ele não pode sair. Mas, com amor e carinho conseguimos criar uma rotina para ele dentro de casa.

Andrea fala sobre os desafios de mudança de rotina e como tem feito para evitar as tão conhecidas “crises”:

-Estamos atentos, e quando notamos que o fato de estar sem poder sair de casa pode gerar uma crise, conversamos com ele, dando opções sobre o que podemos fazer para aliviar o desconforto. Já fizemos uma competição de quem acertava pequenos objetos no tapete e piquenique no carro, na garagem do prédio.

Adriana Godoy mãe do Victor de 17 anos, e Andrea trazem a contribuição de como e o quanto seus filhos tem se revelado potencialmente autônomos, colaboradores e responsáveis apresentando melhora significativa nos afazeres domésticos que são agora compartilhados. Andrea relata que focou em pequenas tarefas, ensinando a preparar o próprio café da manhã, a passar o aspirador de pó em casa e a lavar roupa.

Adriana traz o relato de que nos primeiros 15 dias de isolamento social, tudo parecia uma grande semana de feriadão, é como se fosse um dia chuvoso e frio. Ela fez um desenho para contar para ele que todos estariam em casa e que as aulas teriam uma pausa.  Relata que Victor por volta do oitavo dia ficou nervoso pois provavelmente sentia-se angustiado como todos nós, a diferença é que não conseguia expressar o que sentia do mesmo modo que as pessoas ao seu redor.  Victor tem jogado xadrez on-line, aprendeu a mexer em novas ferramentas tecnológicas fazendo uso de aplicativos em terapias de grupo on-line. Adriana aponta como proveitoso a garantia da conversa e da convivência em família vivendo nesses dias uma relação baseada no companheirismo, sem atos de reclamação e preguiça pois foi entendido a necessidade de apoio mutuo, não sente vivido como um peso, mas sim como uma nova realidade a ser aprendida.

O que tem deixado os filhos de Leopoldina e Ana nervosos é a impossibilidade de sair de casa. Leopoldina afirma que a vida de André, de 41 anos, ficou vazia e está difícil de preencher, ele fazia academia, oficinas de teatro e música e saia todos os dias no bairro e agora não sai mais, os toques aumentaram e tudo se agrava.  Ana, mãe de André de 20 anos, compensa esse espaço fazendo alguns jogos pedagógicos ou bíblicos para passar o tempo, aprender e manter a calma e todas as tardes às 18 horas oram juntos.  André cursa computação e está sentindo falta. Quando perguntamos para André o que pensava de tudo isso ele expressou seus sentimentos respondendo o seguinte:

- Eu estou muito chateado e triste porque não consigo mais ver meus amigos, que droga!

Já Cintia, fala sobre os transtornos causados pelo afastamento das terapias, Henrique de 11 anos faz psicoterapia, terapia ocupacional, natação e na escola onde que estuda faz música, inglês, espanhol e informática. Tem demonstrado saudades dos colegas e falta das atividades que gosta muito.  Relata que as duas primeiras semanas foram terríveis, com chororô intenso, isolamento extremo, chateado com tudo. Criou uma rotina, faz atividades da vida diária junto com a mãe depois escolhe uma atividade de pintura ou letras móveis, ou simplesmente assistem a um desenho antigo que ele gosta. Brincam com massinha de modelar, rabiscar o chão com carvão e percebe que os dias que ele está mais triste geralmente são os dias da natação e terapias que são no contraturno da escola. Mas aponta coisas positivas nessa situação, por exemplo, acabar com a seletividade alimentar que estava batendo na porta. Cintia explica que não dá para ir ao mercado e o que comerão hoje é isso, ele tem aceitado com tranquilidade.

O educador Leandro Luís de Oliveira acredita que os alunos autistas acabam sofrendo com essa quarentena pois perdem a rotina da escola e o controle. Para retomar será um novo processo de adaptação deste período de atividades, o que vai exigir também adaptar os pais pois esta realidade foi quebrada na escola e na vida deles como um todo. Pretende organizar um plano individualizado e personalizado para atender a cada necessidade e afirma que o apoio individualizado deverá ser constante para reconstruir estes laços.

Os depoimentos colhidos e revelados acima, contribuem para que possamos nos conscientizar de que pessoas com autismo se desenvolvem para a vida em sociedade e que a falta de convívio também os deixa infelizes. O contexto apresentado pelos familiares em tempos de pandemia e confinamento nos alerta que devemos limpar nossas lentes e ampliar o olhar sobre a crença de que são as características individuais o foco de causalidade da exclusão dos autistas em nossa sociedade, nos conscientizando que a parceria com a família poderá ser um bom caminho para descortinar os estigmas, que promovem práticas reparadoras e “medicalizantes”.

Os dados nos permitem refletir sobre as possíveis consequências dos movimentos de inclusão escolar e social na promoção de uma sociedade mais humanizada bem como no desenvolvimento dos autistas que demonstram como têm aceito e lidado com as novas situações. Nota-se que todos aprendemos juntos o compartilhamento de regras sociais e a convivência respeitosa com a diversidade humana.

Portanto, cabe pensar na direção de um trabalho em Psicologia que ultrapasse a lógica da “patologização” da expressão humana implícita nos transtornos autísticos e contribua para a transformação institucional e social cumprindo seu papel ético de respeito aos direitos humanos. Nesse dois de abril, a lição que fica para a Psicologia é que #RESPECTRO é espantar os fantasmas que subjazem o autismo e “medicalizam” vidas. Sigamos juntos e parceiros na conscientização e na luta contra a exclusão da diversidade humana.

Meus sinceros agradecimentos e respeito as mães que generosamente contribuíram para que nós psicólogos e população compreendêssemos melhor os seu contexto : Ana Maria de Araújo mãe do André 20 anos, Adriana Godoy, mãe de Victor de 15 anos, Andrea  Natal, mãe de Giovanni de 12 anos ,Cintia Luciene Real, mãe do Henrique de 11 anos, a Fabiana e sou a mãe do Enzo e a Leopoldina M P Oliveira mãe de André de  41 anos. Contribuíram também o diretor escolar, Leandro Luís de Oliveira e o autista André Araújo de Oliveira de 20 anos, a quem estendemos nossos agradecimentos.

Bibliografia
“Nothing About Us Without Us: Some Historical Reflections on the Disability Movement in South Africa” (Nada Sobre Nós, Sem Nós: Algumas Reflexões Históricas sobre o Movimento da Deficiência na África do Sul), inserido no site da Disability World (http://www.disabilityworld.org/11-12_01/it/southafrica.shtml, n.11, nov./dez. 2001). 


Termos relevantes
direitos humanos