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Homeschooling e o PL n. 3262/2019: quando a educação deixa de educar


Publicado em: 22 de junho de 2021

Do que se trata o PL n. 3.262/2019?

No último dia 10 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n. 3.262/2019, que altera o Decreto-Lei nº 2.848/40, o Código Penal brasileiro, para incluir um parágrafo único no seu Art. 246 prevendo que a educação domiciliar (também conhecida como homeschooling) não se configure como crime de abandono intelectual. Diante disso, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo manifesta o seu absoluto repúdio a esse projeto de lei e se posiciona na defesa da educação na escola como elemento indispensável para a formação de nossas crianças e adolescentes e da sociedade brasileira.  

Legalização do homeschooling como violação dos direitos das crianças e das/os adolescentes

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069/90, dispõe em seu Art. 53 que “A criança e a/o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n. 9.394/96, por sua vez, defende em seu Art. 4º que “O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos 17 anos de idade, organizada da seguinte forma: a) pré-escola; b) ensino fundamental; c) ensino médio”.

A educação escolar, conforme disposto em ambos os documentos, é um direito das crianças e adolescentes, sendo uma obrigatoriedade. A escola é um espaço único, indispensável e insubstituível de ensino, aprendizagem, promoção de desenvolvimento integral e interação social. É na escola, por meio do diálogo e da interação direta com outras/os estudantes, professoras/es, gestoras/es e demais profissionais da educação –  técnica e cientificamente capacitadas/os para a docência – que aprendemos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos.    

Mais que isso: na escola, a criança e a/o adolescente têm contato com a diversidade humana expressa nas diferentes etnias, raças, classes sociais, sexualidades, funcionalidades, identidades de gênero, localidades geográficas, crenças religiosas, dentre outras, constatando sua subjetividade única. O convívio social contínuo e prolongado com o diferente durante a infância e a adolescência é requisito fundamental para a formação de sujeitos solidários, empáticos, respeitosos, éticos e democráticos, sendo o ambiente escolar primordial para tal formação. A educação domiciliar, o homeschooling, além de contrariar o disposto no ECA e na LDBEN, também limita profundamente o necessário convívio social das/os estudantes, podendo comprometer sua noção subjetiva, seu processo de socialização e sua formação integral.

Não bastasse isso, a escola também se efetiva como um importante lugar de proteção integral à criança e à/ao adolescente. Suas/seus profissionais podem identificar sinais de violência física e/ou sexual sofrida pela criança e adolescente, realizando o devido encaminhamento. Podem identificar dificuldades no processo de aprendizagem e necessidades educativas especiais com maior rapidez. Quando fisicamente presentes na escola, as crianças e as/os adolescentes também estão protegidas/os da exploração do trabalho infantil.

Quando discutimos a possibilidade de legalização do homeschooling, não podemos deixar de denunciar, ainda, o consequente acirramento das desigualdades educacionais entre estudantes de classes sociais mais altas e estudantes de classes mais baixas. As camadas mais altas da sociedade terão condições de proporcionar às/aos suas/seus filhas/os uma estrutura educacional inatingível pelas camadas mais baixas, infringindo o princípio de igualdade de condições de acesso à educação previsto pela LDBEN e pelo ECA. Desigualdade ainda mais marcante se apontarmos as necessidades de utilização/aquisição de técnicas, metodologias e equipamentos que visem atender às necessidades das crianças e adolescentes com deficiência.

Ressaltamos, ainda, que é papel do Estado e da escola oferecer a educação inclusiva e trabalhar ativamente para sua efetivação, implementando as conquistas que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e outros marcos legais apontam, promovendo um ensino especializado e condizente com as necessidades das crianças e adolescentes com deficiência. É na escola, por meio da convivência e de aprendizados cotidianos, que se fazem as oportunidades para as pessoas com deficiência serem vistas e compreendidas, bem como crescerem e se desenvolverem junto a seus pares.

No cerne deste debate, é fundamental explicitar o que muitas/os tentam omitir ou negar: a função social da escola, que avança para além da formação individual de seus estudantes.

Para além do indivíduo: a função social da escola

Embora negado por alguns setores da sociedade, a escola possui uma dupla função educativa: a educação das/os estudantes para aprendizado de conteúdos escolares e a educação das/os estudantes para sua formação como cidadãos, que contribuirão para o desenvolvimento da sociedade em que participam. No homeschooling, a primeira função pode até ser minimamente atingida, mas a segunda certamente não o será, uma vez que a formação de um cidadão perpassa pela internalização de uma ética do coletivo – conquista que somente é alcançada em um ambiente compartilhado, diverso, inclusivo e democrático. São por esses, dentre outros motivos, que entendemos que a educação domiciliar, ao privar a criança e/ou a/o adolescente da vivência escolar, deixa de educar.

Aprendendo com o presente para pensar o futuro

Durante este quase um ano e meio de pandemia a que temos sobrevivido, como tem sido acompanhar nossas crianças e adolescentes, que agora estudam em casa impossibilitados de frequentar a escola? Quais as consequências que a não presença física na escola e o não compartilhamento de espaço físico com colegas e professoras/es têm acarretado à aprendizagem e ao desenvolvimento de nossas/os estudantes? Como a transformação do espaço doméstico em espaço de escolarização tem influenciado a dinâmica familiar?

Poderíamos seguir com muitas outras perguntas, que nos ajudariam a elencar as diversas dificuldades da educação no espaço domiciliar, dentre elas a falta de um ambiente ricamente preparado para o processo de ensino-aprendizagem, a ausência de um corpo de educadoras/es com preparo técnico e científico para ensinar, a impossibilidade de troca de saberes, experiências e reflexões entre o coletivo escolar. Que esse momento triste e lamentável de nossa história nos ajude a pensar e a construir um futuro mais digno, mais justo e mais humano – e que esse futuro seja construído alicerçando-se na defesa radical de uma educação escolar presencial, coletiva e compartilhada, pública, gratuita, laica, inclusiva, democrática e de qualidade.

Permaneceremos atentas/os a expressões e atitudes que neguem e/ou limitem os direitos das crianças e das/os adolescentes, que violem o ECA e/ou a LDBEN e que dificultem o desenvolvimento integral de nossas/os estudantes.

São Paulo, 22 de junho de 2021. 

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO – CRP SP

 

#PraTodosVerem: nesta publicação há um card de fundo esverdeado, com a textura e rabiscos de uma lousa escolar. Há, também, a ilustrações de uma criança sozinha com sua mochila.