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SUZANO BUSCA SOLUÇÕES PARA CICATRIZAR (E EVITAR NOVAS) FERIDAS



Publicado em: 31 de maio de 2011

Morte de estudantes da Escola Estadual Raul Brasil explicita a
necessidade de aproximação entre áreas como as da Saúde e Educação

Dulcineia Gomes Sena Ramos é coordenadora de Saúde Mental de Suzano (SP), município que ficou marcado pelo triste episódio na Escola Raul Brasil, em 13 de março desse ano. Nesta data, seis estudantes e dois funcionários foram mortos em uma tragédia envolvendo dois ex-alunos armados, que foram vítimas de suicídio em seguida.Ela não hesita em definir a tragédia como o caso “mais difícil” com o qual se deparou ao longo de seus 29 anos de carreira. “Não é apenas o caso mais árduo como psicóloga, mas especialmente como cidadã e, no meu caso, como gestora”, diz ela, que contou ao Jornal PSI como o município está tratando de (re)agir em relação ao tema, no sentido de definir estratégias e planos para evitar que eventos do tipo se repitam. “Nossa expectativa é de que, com toda essa dor, possamos ao menos tirar lições e dar atenção a aspectos que são costumeiramente negligenciados não apenas aqui. Estamos construindo uma ponte e andando sobre ela”, define Dulce, como é conhecida no município, se referindo aos desafios que representa um caso excepcional como o vivido na cidade da Região Metropolitana de São Paulo.

Ela acredita que não exista município brasileiro preparado para uma tragédia como a da Escola Raul Brasil. “Há de se considerar também que, nos últimos anos, temos convivido com um desinvestimento no setor de saúde pública em todo o País, o que representa fragilidade. Isso se traduz, por exemplo, no fato de que contamos – assim como outras cidades – com uma equipe dedicada à saúde mental reduzida. Isso é um problema, ainda que, ao mesmo tempo, por estarmos nessa condição, tenhamos aprendido – e continuamos aprendendo – a pensar estratégias para conseguir lidar com essas limitações e superá-las”, avalia. 

A coordenadora ressalta que, apesar das dificuldades, o município de Suzano obteve avanços importantes nos últimos anos no que tange à consolidação de uma rede dedicada à saúde mental. Hoje, ela é integrada por quatro unidades do Centro de Atenção Psicossocial (CAPs), um “Consultório de Rua”, dedicado à população sem teto, e dez Unidades Básicas de Saúde (UBS), com equipes psicossociais. Em 2018, ganhou ainda uma Residência Terapêutica. “A consolidação dessa rede foi fruto de uma construção coletiva”, destaca.

Do imediato ao perene

Dulce conta que a proximidade existente entre as/os profissionais que atuam na rede municipal contribuiu muito para a agilidade no atendimento às vítimas – diretas e indiretas – da tragédia no mês de março. “Fazemos gestão compartilhada, e muito rapidamente as pessoas estavam mobilizadas”, aponta. 

Um dos CAPs no município, o Alumiar, fica a apenas 50 metros da Raul Brasil. “A proximidade geográfica permitiu que já nos primeiros minutos nossa equipe acolhesse os estudantes que saíam da escola. As/Os próprias/os profissionais, quando perceberam o que estava acontecendo, passaram a acionar seus pares e rapidamente todos estavam lá para dar suporte – pelo menos o básico – às vítimas e suas famílias e converter a unidade em um espaço de acolhida”, relata. 

O Alumiar, nos primeiros 15 dias após a tragédia, concentrou os atendimentos aos afetados. O apoio oferecido incluiu o acompanhamento de familiares ao Instituto Médico Legal e aos velórios. Também foram feitas vistas domiciliares àqueles que não conseguiam, por algum motivo relacionado ao trauma do ato violento, sair de suas residências. “Simultaneamente, as outras unidades acolhiam as demais demandas de saúde mental, e depois das duas primeiras semanas, retomamos à normalidade possível no atendimento à rede”, diz Dulce. 

Ela destaca também o trabalho de psicólogas/os e outras/os profissionais voluntárias/os, que estiveram presentes nos primeiros 15 dias após a ocorrência. A participação delas/es foi encerrada após esse período por questões legais e éticas – Suzano ainda não tem uma Lei de Voluntariado. “As universidades da região tiveram um papel importante ao oferecerem os espaços de suas clínicas e os professores capacitados para ajudarem”, relata. 

Passado esse período inicial, segundo Dulce, consolidou-se a convicção sobre a necessidade de pensar estratégias de médio e longo prazos para tratar a dor e evitar novos episódios violentos. É isso o que está sendo construído agora. Intensificaram-se as conversas com os gestores e com as Secretarias de Educação e Saúde do Estado, e daí surgiu o convênio com o governo de São Paulo. Ele viabiliza a contratação de 47 psicólogas/os para atuar em Suzano, das/ os quais seis são especializadas/os na área de educação. As/os 41 profissionais já contratadas/os chegaram à cidade para começar a atuar em julho – as/os demais ainda estão sendo selecionadas/os. Elas/es foram alocados em serviços públicos de saúde e educação, incluindo a própria Escola Raul Brasil, a Diretoria de Ensino regional, UBSs e CAPs. 

Coletivos

As/os novas/os psicólogas/os de Suzano foram recebidas/os em uma Semana de Acolhimento. Professoras/es da Universidade de São Paulo (USP) e profissionais e servidoras/es do município – incluindo secretárias/os – participaram das atividades, compondo um quadro com formação multissetorial. “Quisemos apresentar do macro para o micro, mostrar o que Suzano oferece em termos de equipamentos da cultura, esporte e assistência social – além dos da Saúde e Educação – para as/os recém-chegadas/os, e, assim, possibilitar o diálogo para a construção de um plano que contemple visões amplas. Juntos pensamos também sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), com seus desafios e avanços, sobre políticas municipais, etc. Houve um momento mais formativo, conduzido por professoras/es da USP, sobre estratégias de manejo em grupo, já que pretendemos que grande parte das ações desenvolvidas seja coletiva”, descreve Dulce. 

As unidades em que as/os profissionais estão alocadas/os estão divididas em regionais, onde se situam várias escolas, e a ideia é levá-las/os – assim como aquelas/es que já atuavam antes no município – para dentro dos educandários, inaugurando uma aproximação que possa, de fato, ser fonte de promoção de saúde dentro desses espaços. “Ao longo da semana, pensamos em parceria e começamos a construir um plano de ação para os próximos meses. Teremos encontros mensais com as/os profissionais da saúde e da educação para construirmos novos saberes e formatar as iniciativas, com a troca de conhecimentos entre todos”, detalha a coordenadora.

Na primeira quinzena de trabalho, as/os novas/os contratadas/os foram a campo para mapear os territórios onde atuam e conhecer e pensar formas de explorar os recursos formais e informais existentes, reconhecer as principais demandas e projetar os próximos passos. 

Proximidade

“Embora muito triste e trágico, o que ocorreu na Raul Brasil traz aprendizados importantes. Por exemplo, deixa em evidência a distância com que os temas da Educação e da Saúde têm sido tratados e que a proximidade entre eles é fundamental para promovermos efetivas transformações”, avalia a psicóloga, para quem outras áreas devem ser envolvidas nos projetos que forem adiante, incluindo as de cultura e de esportes, uma exigência para colocar em prática as ideias que estão surgindo para a cidade. Dulce diz ficar satisfeita com o fato de a Psicologia ser cada vez mais reconhecida socialmente, mas que isso não deve ofuscar a vitalidade de explorar múltiplos saberes e áreas de conhecimento de forma simultânea. “A contratação dos psicólogos foi evidentemente muito importante, mas também é preciso pensar em ampliar o quadro de terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, entre outras/os profissionais que atendem à saúde mental”, defende. 

Uma das preocupações latentes entre as/os envolvidas/os é a de não patologizar a população. A ideia é fugir do perigoso modelo de “diagnóstico e medicalização”, indo na direção contrária: promover ações coletivas, como rodas de conversa e oficinas com as comunidades e as escolares, em especial. “Talvez esse episódio seja uma fonte para imaginar novas políticas públicas intersetoriais, consolidar um trabalho em rede de fato, e, inclusive, ressaltar a importância da presença de psicólogos educacionais nas cidades. Para (re)pensarmos a potência dos grupos e ações coletivas e o sofrimento de adolescer e as novas formas de manifestações de sofrimento psíquico. Não queremos limitar as ações a atendimentos individualizados nem aumentar a demanda por eles, mas promover, efetivamente, a saúde mental das pessoas”, esclarece Dulce. Enfim, da dor, fazer nascer cenário e atitudes positivos.

Compromisso ético
O CRP SP esteve presente orientando e apoiando as/os psicólogas/os das redes de Assistência Social, Saúde, Educação e Emergências e Desastres, assim como
manifestando solidariedade aos munícipes.