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Tudo vira fumaça



Publicado em: 31 de maio de 2012

A casa como construção da subjetividade e a reintegração de
posse como violência de classe, gênero e raça

Por Julia Rezende Ribeiro

O apartamento de Welita a tem em cada um de seus cantos. No cheiro da abobrinha temperada, na textura da toalha de mesa florida e na beleza dos livros na estante que, juntos, formam uma grande parede de saberes. Na varanda, ficam os brinquedos das duas crianças, junto das plantas. Às vezes, a família recebe o cachorrinho de uma colega, que já tem até o seu espaço reservado.

Uma casa com o mínimo – um lugar para dormir, um lugar para receber os amigos e um lugar para fazer as refeições – foi uma realidade distante por muito tempo para Welita Alves Caetano, hoje com 34 anos, graduada em Ciências do Trabalho, mãe, coordenadora de movimento de moradia filiado à Frente de Luta por Moradia (FLM), líder de ocupação, Conselheira Municipal de Habitação e ativista pelos Direitos Humanos.

“Não ter uma casa provocou muitos danos. É muito duro para uma criança se desenvolver no espaço onde não tem uma mesa para escrever os seus textos, fazer suas tarefas de casa”, explica. Até os 10 anos, Welita viveu em Goiás com o irmão e os pais. Por conta da profissão de lavrador do pai, constantemente mudavam de cidade dentro do estado, para que ele pudesse plantar e produzir. Apesar dos muitos endereços, lembra com carinho da casa da avó, uma fazenda no interior, fixa, estável, segura. Sempre um local para retornar.

Com o intuito de oferecer melhores condições à família, o pai de Welita decidiu que iriam morar em São Paulo. Chegaram na Rodoviária do Tietê, na zona norte da capital, sem um plano exatamente estabelecido. Decidiram que venderiam refrigerantes no bairro do Carandiru e morariam em um quarto de pensão. Mesmo sentindo bastante falta da vida no campo, o grande trauma infantil foi outro. “Uma coisa é uma criança ser criada em liberdade, andando a cavalo, cuidando das vacas e das galinhas. Outra coisa é você vir para a cidade, onde não toca mais na terra, nem cuida das plantas. Mas eu acho que o mais difícil foi não ter uma casa para morar”, relembra.

Em pouco tempo, o dinheiro já não era suficiente para as despesas de aluguel e alimentação. Tentaram uma passagem de volta para Goiás em uma unidade de Assistência Social da Prefeitura, mas tudo que conseguiram foram quatro vagas em um albergue municipal.

Chegaram na hora do jantar. Apesar da gentileza dos funcionários, a unidade nunca representou a sua casa. Welita conta que não tinham domínio sobre suas próprias vontades, como a hora de comer ou quando tomar um banho. Além do controle das atividades, o espaço também era dividido pela equipe: homens de um lado, mulheres de outro. A família só se encontrava durante as refeições. “Penso que a casa é um espaço importante para o desenvolvimento do ser humano. E no albergue você não tem isso”, explica. No início da manhã, logo após o café, tinham de deixar o local e só tinham autorização para retornar à noite, no jantar. Nos finais de semana, sem escola, a solução era ficar na Praça do Sé ou passar o dia na igreja: “não ter para onde retornar é algo muito violento para um ser humano suportar”.

E foi durante um destes momentos na rua que sua mãe descobriu uma ocupação, na rua do Ouvidor, na qual o coordenador ofereceu um quarto e dois colchões para a família. Apesar do receio do pai – ele achava que o local poderia ser perigoso – pegaram os poucos pertences e fizeram a mudança, desta vez, para um lugar um pouco mais parecido com o que chamamos de casa. Welita conta que, mesmo sem móveis ou eletrodomésticos, a sensação que sentia era boa. “Era aconchegante estarmos todos juntos”, explica.

“A casa é o lugar onde você vai se construir, a sua subjetividade”, diz Welita, ao citar o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. “Eu vejo que a casa é a extensão do que está dentro da sua cabeça, a sua casa reflete isso”, completa e enfatiza o fato de que o lar é uma necessidade do humano para poder ser: mais do que um ambiente para deitar e descansar seu corpo, é um lugar aonde sempre voltar e um espaço para receber os amigos.

Depois de muitos anos nesta ocupação, a família conseguiu um financiamento de imóvel para pessoas de baixa renda, apartamento no qual os pais de Welita moram até hoje. Atualmente, ela vive com suas duas filhas em outro prédio ocupado, do qual é coordenadora. Apesar de ter transformado o espaço em lar, as coisas nem sempre foram tão harmoniosas.

Reintegração de posse e violência de Estado

Para Welita, o maior algoz do sem-teto é o capitalismo, mas o porta-voz da violência é o Poder Judiciário, uma vez que é o responsável pelas sentenças. “A reintegração de posse não é simplesmente uma reintegração, você está sentenciando uma pessoa à morte. Algo muito importante dentro de você está sendo morto, está sendo destruído, violado, que é a sua casa, onde você vive”, afirma, categoricamente. 

Em 2016, às vésperas de um pedido de reintegração, as trinta famílias que ocupam o edifício fizeram um protesto na Prefeitura de São Paulo. Segundo a líder, as pessoas precisam de uma casa, não podem esperar e não conseguem ser ouvidas. “Um direito não tem fila. Meu direito é meu direito”, enfatiza. Apesar de terem conseguido a permanência no prédio naquele momento, dois anos depois, já em 2018, problemas judiciais obrigaram os moradores a saírem. O período previsto de poucos dias acabou se alargando para cerca de dois meses.

O desmantelamento de famílias e o derramamento dos sonhos são alguns dos danos constantes que resultam da violência do Estado ao ordenar que imóveis sejam desocupados. Segundo Welita, nessas situações, o sentido de casa fica perdido. É preciso encaixotar pertences que não se sabe onde serão colocados, carregar objetos pesados e reorganizar toda a rotina dos filhos. “Sua vida bagunça. Tudo vira fumaça. A reintegração de posse é de uma violência que não se estende apenas em uma casa, não é apenas uma propriedade privada que precisa ser desocupada. É toda uma estrutura de família”, explica.

Welita pontua que qualquer violência contra as pessoas sem-teto tem caráter de classe, gênero e raça. Isso porque quem está na linha de frente da luta dos movimentos por moradia são mulheres negras da classe trabalhadora. “Mesmo que tenha um companheiro, quem aparece é a mulher, sempre. Quando vai ter um atendimento de demanda, no qual todos da casa precisam assinar, aí descobrimos que existe um homem. Mas quem faz a luta, quem vai atrás, quem quer ter uma casa para colocar os filhos são as mulheres”, reafirma. 

A força dessas líderes é notável e se destaca dentro de um universo predominantemente masculino, do ativismo. “Imagine para dialogar com o sistema, a Prefeitura. Elas são o resultado de uma violência de Estado, que as obrigaram a agir dessa forma, serem muito fortes, às vezes, serem muito duras, porque sofreram muito”, complementa.

Welita acredita que os grupos dominantes se utilizam do discurso da mídia para masculinizar essas mulheres, com o intuito final da criminalização da luta. “Eles falam ‘bandidos’. Porque se a sociedade sabe que são mulheres, crianças e idosos, talvez pudesse nos ver de forma diferente”. 

Democracia participativa e solidariedade em rede

A resiliência dos sem-teto acabou por transformar seus espaços em núcleos de resistência. Welita chama de “ralação coletiva” essa união de vivências que se solidifica em uma rede de apoio eficaz e ramificada. A necessidade de uma família, antes individual, se transforma em uma razão de viver para si e pelo outro. “Eu acho que a ocupação é o símbolo de como deveria ser uma cidade”, afirma.

Ela explica que viver em uma ocupação é um exercício constante de diálogo, exposição de ideias, participação e cuidado. Para que sua vizinha consiga fazer faculdade, por exemplo, Welita fica com a função de dar o jantar às filhas da amiga. Outra mãe é responsável por levar as crianças para a escola – desta maneira, Welita conseguiu terminar a graduação e pode atuar como Conselheira Municipal de Habitação e ativista pelos Direitos Humanos.

Para além da solidariedade entre os moradores, ela conta que a ocupação é um lugar de desenvolvimento de pilares fundamentais de democracia e de transparência. Isso porque todas as questões são resolvidas coletivamente, em assembleia, e a prestação de contas fica sempre disponível em um mural. “Se a casa cair aqui, não é a minha, apenas. É a casa de 30 famílias”, pondera a coordenadora. As brigas existem, como em quase todos os espaços de convivência entre pessoas, mas o grupo sempre procura relembrar que a luta é muito maior do que as discussões rotineiras. E a filha mais velha de Welita, aos 9 anos, resume bem o que esta rede representa: “eu gosto de morar na ocupação porque, quando minha mãe precisa de um tomate ou uma cebola, eu vou correndo na casa da vizinha e ela me empresta”.

Psicólogas/os, o livro “Psicologia e Moradia: múltiplos olhares sobre a questão habitacional”, publicado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, em 2019, oferece importante debate sobre as contribuições do exercício profissional da Psicologia no trabalho junto aos movimentos de moradia e políticas públicas de habitação. Convidamos todas/os para fazer essa leitura e compartilhar reflexões pertinentes ao tema. O PDF da publicação pode ser acessado aqui.

Welita Alves Caetano é autora do artigo “A casa do sem-teto, a ocupação!”, disponível no livro.