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Marcos regulatórios da Saúde Suplementar: Leis Federais 9.656/1998 e 9.961/2000



Publicado em: 30 de junho de 1982

A participação da iniciativa privada na saúde submete-se à regulação estatal. No campo da saúde suplementar, a partir de 1998 o Brasil passou a ter uma nova regulação federal sobre o assunto, notadamente a Lei nº. 9.656, de 03 de junho de 1998. Essa lei veio regular as relações privadas na área da saúde, em especial as operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde.

Convém destacar que a Lei nº. 9.656/98 foi substancialmente alterada pela Medida Provisória 2.177-44, de 24 de agosto de 2001. Editada no final do governo Fernando Henrique Cardoso, essa Medida Provisória ainda se submetia à velha sistemática, podendo ser reeditada sequencialmente até que o Congresso a analisasse. O próprio número da MP indica o número de reedições da referida MP: o hífen seguido do número 44 indica justamente que a referida MP foi editada nada menos que 44 vezes.O mais peculiar é que, alterada a sistemática de edição de Medidas Provisórias no Brasil, com a Emenda Constitucional nº. 32, de 11 de setembro de 2001, a Medida Provisória 2.177-44/01 continuou vigorando e será válida como uma Lei até que o Congresso Nacional a analise. Como até o momento o Congresso não se dispôs a analisar a questão, grande parte da regulação incidente sobre a saúde suplementar no Brasil ainda é regulada por Medida Provisória (que embora provisória já dura mais de 5 anos!).

Outro marco regulatório importante foi a Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Essa lei criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e impôs forte regulação e fiscalização sobre os serviços de saúde prestados no âmbito da saúde suplementar. Convém ressaltar que essa Lei também sofreu, embora em menor quantidade, alterações da Medida Provisória 2177-44/01. A
Lei 9.961/00 foi regulamentada pelo Decreto nº3.327, de05 de janeiro de 2000, e pela Resolução da ANS que aprovou o Regimento Interno da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Também possuem relação com os serviços prestados no âmbito da saúde suplementar o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90) e, no caso dos psicólogos, a Lei 5.766, de 20 de dezembro de 1971, que instituiu o Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais, bem como Código de Ética do Psicólogo, que foi recentemente revisado pelo CFP com aprovação da Resolução 010, de agosto de 2005.

A análise que será realizada no presente texto enfocará os contornos normativos que regulam a participação (ou a possibilidade de participação) do psicólogo nos serviços prestados no âmbito da saúde suplementar no Brasil.


a) Lei 9.656/1998

A Lei 9.656/98 veio regular a oferta de serviços de assistência à saúde realizada pelo que conceituou como operadoras de planos privados de assistência à saúde. Entende-se como Plano Privado de Assistência à Saúde a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor.

Dessa forma, as operadoras de Planos de Assistência à Saúde são as pessoas jurídicas constituídas sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que operem produto, serviço ou contrato de planos privados de assistência à saúde.

Classificação das Operadoras

Pessoas físicas não podem operar planos ou seguros privados de saúde. Pela Lei 9.656/98 e de acordo com as regulamentações exaradas pela ANS, as operadoras podem ser classificadas da seguinte forma23:
i) Administradoras: empresas que administram exclusivamente Planos Privados de Assistência à Saúde. São meramente prestadoras de serviços administrativos ligados ao oferecimento de serviços de assistência à saúde, não possuem rede referenciada nem assumem os riscos decorrentes das operações realizadas, que ficam por conta de sua contratante.
ii) Cooperativa médica ou odontológica: Sociedades de pessoas sem fins lucrativos, constituídas conforme o disposto na Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que operam exclusivamente planos privados de assistência à saúde ou planos odontológicos, conforme o caso. Nessa modalidade os médicos (cooperados) são simultaneamente sócios e prestadores de serviços, recebendo pagamento tanto pela sua produção individual, como mediante rateio do lucro obtido pela cooperativa.
iii) Autogestão: São entidades de autogestão que operam serviços de assistência à saúde ou empresas que, por intermédio de seus departamentos (geralmente de Recursos Humanos), responsabilizam-se pelo Plano Privado de Assistência à Saúde destinado, exclusivamente, a oferecer serviços a grupos definidos (empregados da empresa, filiados da entidade etc.).
iv) Seguradora Especializada em Saúde: A Lei 10.185, de 12 de fevereiro de 2001, determinou que as sociedades seguradoras que mantinham carteira de saúde constituíssem seguradoras especializadas para a saúde. São seguradoras, subordinadas às normas da ANS. Atualmente, os seguros-saúde também contam com redes referenciadas de serviços.
v) Medicina de Grupo: Sistema de administração de serviços médicohospitalares para atendimento em larga escala com padrão profissional e custos controlados. O Ministério do Trabalho, pela Portaria n. 3.286 definiu medicina de grupo como a pessoa jurídica de direito privado, organizada de acordo com as leis do país, que se dedique a assegurar a assistência médica ou hospitalar e ambulatorial, mediante uma contraprestação pecuniária preestabelecida, vedada a essas empresas a garantia de um só evento.
vi) Odontologia de Grupo: Aplica-se o mesmo conceito que o utilizado para o de medicina de grupo, com objeto focado nos serviços odontológicos.


a) Plano de Referência

O grande avanço trazido pela Lei 9.656/98 foi a adoção do conceito de plano de referência de assistência à saúde. Dispõe o art. 10:
“Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
I - tratamento clínico ou cirúrgico experimental;
II - procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;
III - inseminação artificial;
IV - tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética;
V - fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados;
VI - fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar;
VII - fornecimento de próteses, órteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico;
VIII – Revogado
IX - tratamentos ilícitos ou antiéticos, assim definidos sob o aspecto médico, ou não reconhecidos pelas autoridades competentes;
X - casos de cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente.
§ 1o - As exceções constantes dos incisos deste artigo serão objeto de regulamentação pela ANS.
§ 2o - As pessoas jurídicas que comercializam produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei oferecerão, obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referência de que trata este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores.
§ 3o - Excluem-se da obrigatoriedade a que se refere o § 2o deste artigo as pessoas jurídicas que mantêm sistemas de assistência à saúde pela modalidade de autogestão e as pessoas jurídicas que operem exclusivamente planos odontológicos.
§ 4o - A amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS.” Depreende-se do referido artigo que quaisquer operadoras de planos e seguros de saúde devem oferecer, no mínimo, o plano de referência. A lógica intrínseca aos planos de referência é a de que, com eles, oferece-se um tratamento integral da saúde. No que se refere à participação do psicólogo nesse espectro de serviços de saúde, faz-se necessário uma análise criteriosa sobre quais seriam as doenças listadas na CID que demandariam, necessária ou facultativamente, os serviços psicológicos. Trata-se de uma questão estratégica para o desenvolvimento das ações do CRP no âmbito da saúde suplementar.

A identificação das possíveis atuações do psicólogo na saúde suplementar também pode ser analisada a partir da identificação de um rol de procedimentos que podem ser realizados pelos psicólogos para o tratamento das doenças previstas na CID. O setor odontológico teve a sua regulamentação realizada nesse sentido. Um importante órgão interlocutor para esse diálogo é o Conselho de Saúde Suplementar, criado pela Lei 9.656/98, art. 35-A, a quem compete, entre outras atribuições, estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar. O CONSU é formado pelos Ministros da Justiça (que o preside), da Saúde, da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Dentre as Resoluções exaradas pelo CONSU, destaca-se, para o presente trabalho, a Resolução CONSU nº. 10, publicada no Diário Oficial da União n. 211, de 04 de novembro de 1998, que dispõe sobre a elaboração do rol de procedimentos e eventos em saúde que constituirão referência básica e fixa as diretrizes para a cobertura assistencial. Desde o advento da Lei da ANS, porém,
o CONSU não tem mais o mesmo papel. Embora legalmente o CONSU ainda mantenha sua existência e competência, na prática o órgão não edita qualquer resolução desde 21 de outubro de 1999.

As competências do CONSU vêm sendo exercidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Convém analisar, portanto, o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar no Brasil e as principais Resoluções Normativas por ela exaradas, em especial no que se refere à definição do plano de referência e à inserção do psicólogo no setor da saúde suplementar.


b) Lei 9.961/2000

Como visto, o Congresso Nacional criou por meio da Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Logo no seu artigo 1º a Lei deixa claro que a ANS é uma autarquia sob regime especial criada como “órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde”. A ANS tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país. Segundo dados da própria ANS, calcula-se que no Brasil aproximadamente 42 milhões de pessoas utilizam os serviços oferecidos pelas instituições privadas responsáveis pela assistência suplementar à saúde. Trata-se de um enorme contingente humano que depende das normas jurídicas exaradas pela ANS.

De fato, compete à ANS normatizar sobre diversos aspectos relacionados com a saúde suplementar no Brasil, de acordo com os preceitos da Lei 9961/2000. O Art. 4º estabelece uma ampla competência normativa da ANS ao longo de seus 42 (quarenta e dois incisos). Assim, compete à ANS criar normas jurídicas que regulamentem as condições de registro das operadoras de planos
privados de saúde, os conteúdos básicos dos contratos a serem firmados entre as operadoras e os usuários, as condições de reajustes dos preços dos planos de saúde, etc. Alguns exemplos de competências normativas infralegais da ANS: normatizar sobre as características gerais dos instrumentos contratuais utilizados nas atividades das operadoras (Art. 4º, II); definir o rol de procedimentos e eventos em saúde que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades (Art. 4º, III); normatizar sobre os critérios para os procedimentos de credenciamento e descredenciamento de prestadores de serviço às operadoras (art. 4º, IV); definir os conceitos de doença e lesão preexistentes (Art. 4º, IX); estabelecer critérios de aferição e controle da qualidade dos serviços oferecidos pelas operadoras de planos privados de saúde, sejam eles próprios, referenciados, contratados ou conveniados (Art. 4º, XV); adotar as medidas necessárias (inclusive normativas) para estimular a competição no setor de planos privados de assistência à saúde (Art. 4º, XXXII), entre outras competências normativas expressamente previstas pela Lei.

A edição de normas jurídicas pela ANS é de competência de sua Diretoria Colegiada, a exemplo da ANVISA (Art. 10, II). A produção normativa da ANS é realizada através de Resoluções de Diretoria Colegiada, atualmente denominadas Resoluções Normativas (conforme nova denominação dada pelo Regimento Interno, art. 64, II, a). Vale destacar para a presente pesquisa dois órgãos específicos da ANS que possuem direta relação com o tipo de intervenção que o Conselho de Psicologia deseja realizar junto à Agencia. O primeiro e mais relevante é a Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos, a quem compete planejar, coordenar, organizar e controlar as atividades de regulamentação, habilitação, qualificação e acompanhamento dos produtos ou planos privados de assistência à saúde (art. 29 do RI).

O outro órgão, subordinado à referida Diretoria, é a Gerência Geral de Estrutura e Operação dos Produtos, a quem compete propor normas à Diretoria sobre as seguintes matérias: a) características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras; b) critérios e procedimentos para o credenciamento e descredenciamento de prestadores de serviços às operadoras; c) condições dos produtos visando a garantia dos direitos assegurados nos arts. 30 e 31 da Lei n. 9.656/98; d) registro dos produtos definidos no inciso I e no §1º do art. 1º da Lei 9.656/98; e) concessão, manutenção e cancelamento do registro dos produtos das operadoras de planos de assistência à saúde; f) adaptação dos contratos; g) redimensionamento de rede das operadoras; h) responsabilidade dos contratantes, quer seja pessoa física ou jurídica; i) relação entre as operadoras e seus prestadores.

Finalmente, vale ressaltar que a ANS possui uma Câmara de Saúde Suplementar, criada pela Lei 9.961/00 e que teve sua composição definida pelo art. 13 da Lei (repetida pelo art. 60 do Regimento Interno da ANS). Trata-se de órgão consultivo e permanente da ANS que não possui em sua composição nenhum representante do CRP.


c) A fiscalização dos serviços dos Psicólogos prestados no âmbito da saúde suplementar

No Brasil, os serviços de normatização e fiscalização de profissões regulamentadas são realizados pelos Conselhos de Classe mediante autorização legislativa. Dessa forma, as profissões regulamentadas no Brasil (médicos, advogados, enfermeiros, farmacêuticos, economistas, engenheiros, arquitetos, etc.) possuem um sistema de auto-regulação organizado pelos próprios profissionais que as exercem. Esse exercício de auto-regulação é reconhecido no Brasil, sendo uma realidade jurídica a existência de normas específicas que regulam as profissões relacionadas com o exercício de ações e serviços de saúde, como as profissões de médico, enfermeiro e farmacêutico e psicólogo.

Os próprios profissionais organizam, estruturam e desenvolvem a gestão dos seus respectivos Conselhos, observados os limites da delegação dada pela lei. A Lei 9.649/98, em seu artigo 58, tentou caracterizar os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas como dotados de personalidade jurídica de direito privado (tradicionalmente sempre foram considerados como sendo autarquias dotadas de personalidade jurídica de direito público). A lei foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo Partido Comunista do Brasil contra a caracterização dos Conselhos de Classe como pessoas jurídicas de Direito privado. A decisão teve como fundamento principal o fato de que tais conselhos exercem funções normativas e fiscalizadoras em suas respectivas áreas de atuação e, de acordo com o entendimento do STF, o exercício de função normativa e fiscalizadora exige que tais Conselhos sejam caracterizados como sendo de personalidade jurídica de Direito público.

Para garantir o seu funcionamento os conselhos de fiscalização de profissões são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como preços de serviços por eles desenvolvidos, que constituirão receitas próprias. Em geral os profissionais sujeitos à ação fiscalizatória desses conselhos são obrigados a pagar anuidades, voltadas à manutenção do próprio Conselho.

Como instituições destinadas à fiscalização do exercício profissional, os Conselhos de classe dos profissionais que atuam na área da saúde representam uma importante fonte de produção de normas jurídicas infra-legais específicas de direito sanitário, em especial no que se refere à regulamentação dos respectivos Códigos de Deontologia, que definem os padrões éticos de comportamento a serem seguidos pelos profissionais da área da saúde. Nessa linha foram criados os Conselhos Federais e Regionais de Psicologia, Lei nº. 5.766, de 20 de dezembro de 1971. O Conselho Federal de Psicologia recentemente reviu o seu Código de Ética com a aprovação da Resolução 010, de agosto de 2005. Vale dizer, ainda, que os serviços de saúde prestados no âmbito da saúde suplementar ficam sujeitos à fiscalização exercida pelos órgãos de defesa do consumidor, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.