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O desafio de despatologizar a sexualidade


Publicado em: 16 de dezembro de 2015
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

Dezesseis anos após sua publicação, Resolução 001/99 do CFP, que estabelece normas profissionais relacionadas com o tema da orientação sexual, ainda enfrenta obstáculos para efetiva aplicação     src=/ckfinder/userfiles/images/Dollarphotoclub_84945280_red.jpg   Quando entra em sala de aula para falar sobre temas como orientação sexual e identidade de gênero, o professor da PUC de Minas Gerais Paulo Roberto Ceccarelli sabe que tem pela frente uma missão importante: disseminar entre as/os futuras/os psicólogas/os as bases de uma conduta profissional que deve combater a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, contribuindo para diminuir o preconceito e a estigmatização. Não raro ele depara com estudantes que se mostram resistentes a aceitar essas diretrizes. As argumentações deles muitas vezes estão calcadas em crenças religiosas.   O que se passa na sala de aula é um pequeno exemplo do tamanho do desafio para que a Resolução 001/99, publicada há dezesseis anos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), seja aceita e efetivamente aplicada. Ceccarelli fez parte do grupo de discussões que forneceu as bases para a elaboração do texto da Resolução, que estabelece normas relacionadas ao tema da orientação sexual. Segundo ele, o documento é alvo de polêmicas até hoje. Os que o condenam costumam dizer que a Resolução impediria a assistência psicológica ao público LGBT. “A Resolução não impede o tratamento. A questão é: não há o que tratar, porque homossexualidade, bissexualidade e transexualidade não são doenças”, afirma.   Mas isso não proíbe que psicólogas/os acolham e tratem o sofrimento de quem procura ajuda em razão de problemas enfrentados devido à sua orientação sexual. Esse sofrimento quase sempre tem como motivo a pressão social para se encaixar em um padrão considerado “normal”. Em outras palavras, esse sofrimento é gerado pelo preconceito e não pela orientação sexual de cada um.   “Cura gay”   O que motivou a elaboração da Resolução 001/99 foi a necessidade de coibir a prática da chamada “cura gay”. Dois anos antes de sua publicação, o CFP havia recebido uma manifestação do Grupo Gay da Bahia, Associação de Defesa dos Direitos Humanos dos Homossexuais, que se mostrava indignada com a realização de um congresso religioso que prometia a “cura” da homossexualidade com a ajuda de uma/um psicóloga/o. Ao ser questionado sobre que postura tomaria diante da atitude desse profissional, o Conselho Federal percebeu que não dispunha de instrumentos para adverti-lo, já que, formalmente, não existia regra que dissesse que estava proibido de fazê-lo por ferir a ética da profissão.   À frente do CFP na época, a psicóloga Ana Bock conta que o assunto foi levado à discussão em plenária. O consenso foi de que, para responder à sociedade sobre questões desse tipo, seria necessário produzir referências técnicas e éticas que pudessem balizar a prática das/dos psicólogas/os. Foi então formado um grupo com terapeutas, educadores e profissionais de hospitais para produzir as discussões que serviriam como base para a formulação do texto final da Resolução. “O texto foi muito debatido e construído de forma democrática”, diz ela, explicando que ele foi levado a duas edições da Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf), ocasião em que se reúne todo o Sistema de Conselhos de Psicologia. O resultado foi um documento com princípios que estão de acordo com o que determina hoje a Organização Mundial de Saúde e que foi considerado pioneiro no mundo.   “Nossa Resolução serviu como referência para a American Psychological Association (APA) e para organismos ligados aos direitos humanos”, conta Bock. Traduzida para o inglês, francês e espanhol, ela também foi debatida pela União Latino-Americana de Psicologia. Mas, se por um lado a norma foi elogiada e reproduzida, por outro segue no centro de polêmicas. O exemplo maior é o Projeto de Decreto Legislativo 234/11, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), que quer tornar sem efeito o trecho do Artigo 3º e todo o Artigo 4º da Resolução, que dizem que as/os psicólogas/ os não devem colaborar com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades e que profissionais da Psicologia também não devem se pronunciar publicamente defendendo tais posturas.   Do papel à prática   Para José Luis Gomez, psicólogo do Centro de Cidadania LGBT da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, apesar da Resolu- ção 001/99 e do fato de a homossexualidade ter deixado de constar do Código Internacional de Doenças (CID) há 25 anos, há muito a ser feito para combater a homofobia, a bifobia e a transfobia. Segundo ele, embora não sejam frequentes, ainda hoje chegam ao CC LGBT usuários que afirmam ter recebido orientações de psicólogas/os para “tratarem” de sua homossexualidade.   Com o objetivo de mudar essa realidade, o Centro promove eventos de sensibilização e capacitação tanto para profissionais de saúde como para o público em geral. “Se recebemos queixas de funcionários de uma empresa de que sofreram homofobia, acionamos essas corporações para levar sensibilização aos demais trabalhadores de forma a evitar que a situação se repita”, explica Gomez. Ele diz que, além de empresas, essas ações já foram levadas também a Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Centros de Acolhida municipais e hospitais públicos. Para ele, a discussão deve ser ampliada também em instituições de ensino de todos os níveis. “As questões de sexualidade e identidade de gênero são pouco discutidas nas escolas e faculdades, inclusive nos currículos de Psicologia. E, infelizmente, a questão de educação de gênero não foi incluída no Plano Municipal de Educação”, ressalta.   As origens do preconceito   A persistência da polêmica com relação à Resolução do CFP depois de mais de uma década, segundo Paulo Roberto Ceccarelli, está associada ao fato de que ela mexe com estruturas seculares da nossa sociedade. Elas são tão antigas quanto o mito de Adão e Eva, que associa a perda do paraíso a uma questão de gênero. Para dizer o que é patológico em sexualidade, diz ele, primeiro é necessário definir o que é “normal”. E o que é “normal”, no caso, não tem nada a ver com o que é natural – por exemplo, é natural que mulheres gestem filhos e homens, não. “O que é considerado ‘normal’ para quem defende que só é aceitável a união sexual entre um homem e uma mulher está relacionado na verdade com um discurso de poder ligado à mitologia da nossa sociedade”, afirma Ceccarelli. Ele ressalta que ao comparar a mitologia ocidental, de origem judaicocristã, com a de outras sociedades, como as de povos indígenas brasileiros, por exemplo, é possível perceber uma grande diferença na maneira de encarar, vivenciar e aceitar a sexualidade.   Ceccarelli não considera que existam patologias relacionadas à sexualidade, mas sim perversões que podem ser definidas como a imposição daquilo que o outro não quer no terreno sexual e que geram sofrimento. O estupro e o abuso sexual infantil podem ser considerados perversões. Seguindo esse raciocínio, o psicólogo diz que quando o Estado ou seus legisladores promovem a repressão à homossexualidade, bissexualidade e transexualidade, também agem de forma perversa. Dessa forma, aqueles que levantam a voz em nome da moralidade são, na verdade, os que mais agem de forma a alimentar o sofrimento alheio.   Fora do catálogo de doenças   Embora a homossexualidade tenha deixado de ser considerada como transtorno mental pela Associa- ção Americana de Psiquiatria em 1973, até 1990 ela foi mantida na Lista da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse conceito foi revisto na 10ª Revisão da lista, que determinou que “a homossexualidade per se não está mais incluída como categoria”. Ainda assim, a orienta- ção sexual continuou tendo caráter patologizante devido à sua associação com categorias que a conectam a distúrbios mentais. Atualmente, a OMS trabalha na 11ª revisão de sua lista, que deve ser publicada em 2017. O grupo de trabalho de Classificação de Desordens Sexuais e Saúde Sexual indicou que vai propor que as categorias de doenças relacionadas à sexualidade para diagnóstico com base na orientação sexual sejam totalmente excluídas da classificação.     Jornal PSI, nº 185