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“Devemos descriminalizar todas as drogas”


Publicado em: 22 de janeiro de 2016
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

Em entrevista, o neurocientista americano Carl Hart critica a estigmatização de pessoas que estabelecem relações nocivas com drogas ilícitas e diz que a Psicologia pode contribuir nesse debate se superar o que classifica como “fascinação pela neurociência”   src=/ckfinder/userfiles/images/Carl   Carl Hart chama a atenção pela eloquência e clareza com que defende seus pontos de vista. Primeiro docente negro titular da história da Universidade de Columbia, onde atua como professor associado dos departamentos de Psicologia e de Psiquiatria, suas contribuições sobre a desigualdade a partir do marcador social de raça calcada na hierarquização produzida pela colonização, pelas práticas racistas e violentas e pelas pretensas teorias racistas são acolhidas em diferentes espaços científicos. É hoje um dos poucos negros que produzem ciência devido aos processos de racismo institucional presentes na academia e do racismo estrutural das sociedades contemporâ- neas. Nesta entrevista exclusiva, Hart fala sobre dependência, preconceito, segregação e como um olhar humanizador, aliado à descriminalização de susbtâncias consideradas ilícitas, pode resgatar pessoas da segregação social.   Por que escolheu o tema drogas como foco de atuação? Originalmente, estava tentando entender como o cérebro funciona. Queria fazer um PhD em neuroci- ências e as drogas eram uma ótima ferramenta para descobrir como as células do cérebro funcionam. Elas podem mudar a própria função e isso pode nos dizer algo sobre como funcionam quando não estão alteradas. Fiquei interessado, parte por achar que elas estavam destruindo comunidades como a comunidade pobre de onde vim.   Qual é o impacto da proibição na forma como as drogas são vistas e como avalia as políticas antidrogas? O impacto da proibição tem sido tão positivo quanto negativo. Se você é um político, se estiver fazendo policiamento ou em tratamento, a proibição tem sua finalidade. Como político, pode dizer aos cidadãos que colocará mais policiais nas ruas e combaterá mais o crime e as drogas. As pessoas dirão: viva, viva! Se é policial, verá seu orçamento aumentar. Se coordenar uma prisão, seu orçamento também crescerá. Se estiver em tratamento, você tem tratamento ou a cadeia. Mas isso representa pequena parte da sociedade. A grande maioria pagou o preço para que essas outras pessoas se beneficiem. Então, a proibição teve efeito negativo – principalmente em nós, a população, pois um grande número de pessoas vai para a cadeia por crimes relativamente pequenos. São crimes, sim, nós os tornamos crimes. E assim diminui a probabilidade de algumas pessoas terem bons trabalhos, por terem ficha criminal. Também diminui a segurança de algumas drogas nas ruas, pois, comercializada somente no mercado ilegal, coloca a vida dos que usarão essas drogas em risco.   Como os resultados de seu estudo podem ajudar a pensar sobre políticas de drogas?  A minha pesquisa é sobre onde realmente fornecemos drogas às pessoas. Distribuí milhares de doses de crack, cocaína, maconha, e o achado mais importante é que elas podem ser administradas com segurança para as pessoas. Essa é a conclusão número um. Então, quando pessoas dizem que essas drogas produzem efeitos imprevisíveis não estão dizendo a verdade. É importante saber que se regularizarmos o uso, a sociedade não irá desmoronar. Uma das conclusões mais importantes de meu estudo é que se pode mudar o fato de alguém usar drogas ou não simplesmente ao fornecer a essa pessoa uma alternativa que seja mais atraente. Em nosso caso, fornecemos várias quantias em dinheiro. Ao fazer isso, verificou-se que o uso de drogas diminui. Esse é um achado importante. Nos diz, como sociedade, que você precisa oferecer opções para as pessoas. Se fizer isso, pode realmente controlar o uso de drogas. Não que as pessoas jamais usariam drogas, porque elas funcionam, são divertidas para algumas pessoas. Mas se tiverem a quantidade certa de alternativas, não verão isso.   Esses resultados surpreenderam você? Sim. Me diziam que drogas como crack e cocaína eram tão viciantes que as pessoas que as consomem preferem isso a cuidar de si mesmas e que as usariam em toda oportunidade. Esses resultados são muito importantes para uma política sobre uso de drogas. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, há um foco muito forte na guerra contra as drogas, no absenteísmo e em outros problemas do uso conhecido de drogas.   O que você mostra aponta para outras formas de pensar em políticas de drogas... Obviamente, deve haver mudanças. Em meu livro escrevi sobre as mudanças que defendo e que nós devemos descriminalizar todas as drogas.  Se olharem para a ciência o suficiente, perceberão que o que estamos fazendo em termos de política com drogas não faz sentido, está errado.   Quais são os problemas da concepção de dependência em drogas e como problematizá-la? Uma das primeiras coisas que se confunde é falar sobre uso de drogas e dependência em drogas como se fossem a mesma coisa. Não são, pois sabemos que a maioria das pessoas que usa drogas – todas essas drogas que mencionei –, não são dependentes. Elas vão trabalhar, pagam seus impostos, cuidam de suas famí- lias. Somente pequena porcentagem das pessoas que usa drogas, entre 10% a 20%, se tornam dependentes. Isso nos diz que a própria droga não é a culpada, que há outros fatores envolvidos, que é o que estamos tentando focar em nossa pesquisa. A dependência em drogas é um problema relativamente pequeno, mas recebe toda nossa atenção quando falamos sobre drogas. Esse é o problema.   A pobreza é alvo dessa estigmatização? Como as pessoas usam drogas não varia de raça ou gênero. As pessoas ficam chapadas da mesma forma, na maioria das vezes. O que difere é como a sociedade vê esses grupos diferentes. Nos Estados Unidos e no Brasil prendemos pessoas de comunidades pobres que usam drogas com muito mais intensidade do que fazemos com pessoas ricas. Não entramos nas suas casas e derrubamos a porta para procurar drogas, embora elas as estejam usando. Então, vamos atrás das pessoas pobres. Elas não se negarão (a serem invadidas), pois não podem se negar, não têm dinheiro para dizer que isso é errado. E prendemos essas pessoas não por elas estarem usando drogas com mais frequência: prendemos essas pessoas pois tiramos vantagem delas em todos os momentos em nossa sociedade. Seja por uso de drogas, seja como mão de obra barata. As pessoas ricas, quando estão usando drogas, o fazem somente para expandir seu nível de consciência. Já as pessoas pobres fazem uso por serem más. É o que a sociedade diz.   Como avalia o foco do tratamento de dependência de drogas? É preciso se certificar de que tenham uma avaliação muito boa para entender o motivo de pessoas serem dependentes. Algumas têm distúrbios psiquiátricos, como depressão, ansiedade, esquizofrenia, dificuldades de aprendizado, uma grande gama de distúrbios que predispõem à dependência. Uma boa avaliação indicará isso. Outras vezes, são dependentes por não terem outras alternativas. Talvez, uma das melhores alternativas que têm é usar drogas. Se este for o caso, o tratamento deve ser diferente. É preciso ajudar as pessoas a desenvolverem habilidades, trabalhos, para conseguir inseri-las. Isso ajudará no tratamento da dependência. Então, tudo depende do que a avaliação disser sobre o motivo de a pessoa estar dependente. Esse é o primeiro passo antes de imaginar um tratamento que funcione para todos. Não é assim que funciona.   Como a Psicologia pode contribuir com esse debate e avançar em sua intervenção? A Psicologia pode contribuir, primeiramente, ao se lembrar de que é Psicologia: isto é, não ficar muito impressionada e fascinada com a neurociência, isoladamente. A neurociência na Psicologia se tornou tão dominante que se esquece de olhar o comportamento. Se olharmos o comportamento e as coisas que são responsáveis pelo comportamento, como as condições ambientais, a Psicologia pode contribuir bastante. Mas se estiver olhando somente para o disparo de uma célula ou alguma função cerebral, se tornará irrelevante. É o que se tem feito. Então, tudo depende de para onde a Psicologia está indo.   Você visitou a Cracolândia. O que viu? O nome Cracolândia é inadequado. Há mais coisas acontecendo em lugares como esse que não são relacionados às drogas. As pessoas se amam, fazem todos os tipos de coisas que fazemos em nossas vidas. Chamar de Cracolândia é realmente estigmatizar as pessoas e vilanizá-las de forma que nos permitam, como sociedade, não ter de lidar com elas como seres humanos. É esse o motivo de se usar esse tipo de termo. Minha impressão é que quando estive no Brasil para conhecer como o país vê as drogas, estava voltando aos Estados Unidos de 1986. As pessoas estão cometendo os mesmos erros que fizemos nos EUA, 28 anos atrás, ao pedirem essas políticas e a forma como tornam os usuários de drogas em vilões.   Como Brasil poderia responder ao uso de drogas? A forma mais honesta de responder é que não podemos somente pensar sobre uso de drogas de forma isolada. Não podemos dizer que o problema é o uso de drogas quando os problemas a que estamos atribuindo o uso de drogas já existiam antes desse uso. O Brasil sempre teve serviçais, se tornou independente há menos de 200 anos. Mas esses serviçais sempre estiveram aí. Agora estão culpando as drogas pelos serviçais, mas os serviçais já estavam aí. Se há bodes expiatórios convenientes, não é preciso lidar com o problema.     Jornal PSI, nº 185