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A psicologia e a ética com a vida


Publicado em: 18 de abril de 2016
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

Aborto e sucídio são exemplos de temas que fazem interface entre a psicologia e a bioética   Até que ponto a/o profissional deve manter o sigilo e a privacidade de seus atendimentos perante a família e a equipe multiprofissional? Como proceder se a pessoa que você atende manifesta o desejo de acabar com a própria vida? A autonomia de uma pessoa em relação ao cuidado que deseja deve ser respeitada em todos os casos, ainda que sua decisão possa levá-la à morte?   “A bioética é dinâmica. Não se trata, definitivamente, de uma área do conhecimento humano para definir regras ou discutir o certo e o errado”, assinala o médico reumatologista José Marques, coordenador da Câmara Técnica Interdisciplinar de Bioética do CREMESP (Conselho Regional de Medicina de São Paulo). “Trata-se de um espaço de reflexões, de debates e de liberdade para se discutir questões relacionadas à vida, no sentido mais amplo possível, incluindo todos os seres vivos do planeta. A discussão bioética tem como linha mestra a liberdade de opiniões”, salienta.   O termo bioética começou a ser cunhado na década de 1970 nos Estados Unidos. A origem mais conhecida remete ao bioquímico e oncologista Van R. Potter, que defendia a necessidade de unir o conhecimento das ciências naturais e humanas com os valores da sociedade, para aprofundar as reflexões a respeito dos desafios relacionados às questões ecológicas, tecnológicas e de sobrevivência da vida na terra. No mesmo período, o obstetra católico André Hellegers introduziu na academia a discussão de questões éticas nas decisões de profissionais da saúde.    “Para esses e todos autores da área da bioética, trata-se de um campo obrigatoriamente multi e transdisciplinar. Portanto, não restrito à área médica”, esclarece José Marques, para quem “a psicologia contribui efetivamente com o desenvolvimento das discussões bioéticas, colocando em pauta o arcabouço teórico dessa área da saúde, principalmente relativo ao comportamento das pessoas”.   Células tronco, aborto, pesquisas com seres vivos, transgênicos, tratamento de pacientes terminais e genética são exemplos de questões polêmicas e atuais da área de bioética. Para Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), os temas centrais “estão relacionados à desigualdade econô- mica, que vem piorando as condições de saúde e vida de grande parte da população mundial, aumentando os conflitos, as migrações e a violência”.   Interfaces entre a psicologia e a bioética  “A psicologia é um campo imprescindível nesse debate com a bioética, pois sabemos que tais conflitos e dilemas são, a par das questões técnicas e éticas, desencadeadoras de grande sofrimento moral no processo de escolha e decisão tanto para o indivíduo, quanto para a família e a sociedade”, expõe Parizi.   Maria Júlia Kovács, do Instituto de Psicologia da USP, estuda a questão da morte no processo de desenvolvimento do ser humano. “Um tema pouco debatido é a questão do suicídio e o direito em relação à própria vida e morte. Qual o nosso papel como psicoterapeutas? Evitar o suicídio a todo custo, ajudar a pessoa a compreender o seu desejo de tirar a própria vida? Esta questão envolve um conflito sobre o sigilo e deveria ser debatida em vários fóruns do CRP”, comenta. “A psicologia é um campo imprescindível no debate com a bioética, pois tais dilemas são, a par das questões técnicas e éticas, desencadeadoras de grande sofrimento no processo de escolha para o indivíduo, a família e a sociedade”  Regina Parizi A/o psicóloga/o, na opinião de Maria Júlia, pode e deve ajudar em processos de escuta de pontos de vista diferentes e de decisões relacionadas à bioética. “Um ponto de vista seria discutir o sigilo em situações em que a pessoa corre risco de vida, como no caso de ideação ou tentativa de suicídio. Esta questão pode ser contemplada no contrato inicial, por exemplo, se a/o terapeuta considerar que vai avisar a família se vir este risco, e a pessoa pode decidir se quer ou não continuar com a/o terapeuta. Ou se não for esta a perspectiva da/o terapeuta, poderá sustentar com seu paciente que vai escutar seu processo e garantir o sigilo”, exemplifica.   A área da bioética desenvolveu alguns princípios básicos para nortear a assistência e a pesquisa diante das questões relacionadas à vida. Longe de serem fórmulas, tratam-se de aspectos norteadores, principalmente no âmbito da saúde: os princípios da beneficência (oferecer a melhor assistência), da não maleficência (evitar ou reduzir o dano em maior medida), da autonomia (respeito ao direito da pessoa decidir livremente sobre seu tratamento ou sua vida) e da justiça (acesso à assistência ou tratamento como um direito).   “Pelo princípio da autonomia, no que se refere a tratamentos, cabe à pessoa tomar a decisão sobre a sua vida. À/ao psicóloga/o caberia acompanhar o processo e discutir vários pontos de vista: quais os benefícios, efeitos colaterais, malefícios das decisões daquela pessoa?”, reflete Maria Júlia. “Uma área importante da prática do psicólogo é trabalhar contra a distanásia, que é o prolongamento do processo de morrer com muito sofrimento. É fundamental esclarecer o paciente e os familiares sobre essa questão”, opina.   Qualquer pessoa está em condição de exercer a sua autonomia de escolha? Essa é outra das complexas questões que, sem respostas prontas, mudam de caso a caso. De acordo com alguns autores, para considerar uma pessoa autônoma, são necessárias algumas condições: a possibilidade de compreender e analisar uma situação (racionalização), habilidade para escolher entre várias hipóteses (deliberação) e a liberdade para fazer sua escolha livre de qualquer influência (voluntariedade). Kovács argumenta que a/o psicóloga/o tem um papel na busca dessas competências: “Acho que não é tentar criar essas condições, mas facilitar o processo”.   O aborto Os casos de zika vírus e sua possível conexão com a proliferação de bebês nascendo com microcefalia têm dado novos contornos ao debate da legalização do aborto. Por um lado, grupos defendem que o aborto nesses casos seja permitido, como foi com a anencefalia, e que o direito de escolha deve ser da mulher. Por outro, grupos (em sua maioria religiosos) dizem que a medida seria de eugenia, por abrir brechas para que o aborto possa ser realizado em qualquer caso de má formação do feto. O tema deve chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF).   “O debate sobre a descriminalização do aborto será sempre redicivante, enquanto a questão central não for debatida pela sociedade, ou seja, o respeito à autonomia das pessoas, no caso dos direitos reprodutivos das mulheres”, enfatiza Regina Parizi. “Na questão da microcefalia é importante lembrar que já existia um número razoável de casos por outras causas, antes da epidemia de zika vírus. Assim, em que pese a lamentável situação da falta de controle sobre a reprodução dos mosquitos, entendo que o debate central relacionado a essa situação é o direito das mulheres abortarem quando sabem que vão gerar seres sem condições de autonomia”, ressalta.   A contribuição da psicologia nesse tema, para a presidente da SBB, é fundamental. “A psicologia pode e deve participar do debate público tanto das questões técnicas e éticas, como moral, sobretudo no processo extremamente doloroso de escolha, que envolve tanto aquelas que optam por manter a gestação, quanto aquelas que decidem interromper a gravidez”, diz.   Autonomia, privacidade e reflexão “Existem diversos problemas éticos na sociedade atual que fazem interface com a psicologia, como a questão do preconceito e da exclusão social que estimula o bullying, o uso de drogas e armas entre as crianças e os adolescentes. A migração em função dos conflitos armados, religiosos e problemas sociais que estimulam a violência e o terrorismo, entre outras questões; que são de abordagem da equipe interdisciplinar, entre elas a psicologia”, nota Parizi.   Apesar das difíceis situações éticas relacionadas à vida às quais a/o psicóloga/o se depara no cotidiano e que não carregam soluções prontas, José Marques destaca o respeito à autonomia, à privacidade e ao sigilo como aspectos imprescindíveis de uma/um boa/bom profissional. “A atuação comprometida com o paciente, a empatia e a visão de que na área da saúde não existe nada mais importante de quem está sendo cuidado é outra linha fundamental de comportamento da/o profissional da área da psicologia com uma ampla visão bioética”, finaliza.