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Com duas grandes campanhas, CRP SP se posiciona pela defesa de direitos


Publicado em: 5 de outubro de 2016
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

Campanhas de 25 anos do ECA e de Direitos Humanos foram algumas das iniciativas da gestão 2013-2016   O dia era de garoa fina no Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo. O 18 de maio, além de ser o dia da luta antimanicomial, é o dia nacional de combate ao abuso e à exploração de crianças e adolescentes. Jovens de Centros para a Juventude (CJ) da região se reuniram para participar da atividade que, com o nome “Esquecer é permitir, lembrar é combater”, discutiu por meio de teatro e falas o enfrentamento das violências sexuais na infância e adolescência.   A roda de conversa integrou a campanha ECA 25 anos “Brincar pra valer, valer pra brincar”, iniciativa do CRP SP para debater, ao longo de um ano com 25 rodas de conversa espalhadas pelo estado, temas relevantes à juventude no marco do aniversário de um quarto de século do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).   “Sobretudo neste ano em que o ECA tem recebido fortes ataques por meio de propostas de diminuição da maioridade penal e aumento do tempo de privação de liberdade de adolescentes, é imprescindível que o acúmulo das lutas que travamos possa subsidiar debates consistentes e fomentar a consolidação de políticas capazes de respeitar a infância e a adolescência a partir do paradigma da proteção integral”, aponta carta do CRP SP para as Conferências dos Direitos Humanos das crianças e dos adolescentes.   “Qual o lance do lança?”, “O sistema socioeducativo paulista em debate”, “Roda de conversa sem terrinha”, “Crescer não é brincadeira, nem todo adolescente fala besteira”, “Por uma galera sem rótulos, ta ligado?”, “Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” e “Direito à educação e à participação política” foram os nomes de algumas das 25 atividades da campanha que aconteceram entre 2015 e 2016 em diversos municípios de São Paulo.   Com psicólogas/os e por vezes jornalistas, os eventos contaram sempre com a presença de crianças e adolescentes e objetivaram qualificar as referências da psicologia para a atuação na defesa de direitos e provocar a sociedade para o reconhecimento dos princípios preconizados pelo ECA.   Ana Maria Araújo dos Santos, de 16 anos e moradora do Jardim Ângela, era uma das mais extrovertidas entre os cerca de 100 jovens que participaram da atividade sobre violência sexual. Integrante do CJ Raviera e do Fórum Regional da Criança e do Adolescente, Ana é categórica: “O jovem da minha idade sabe dos seus direitos. No Fórum a gente senta e conversa para abrir a mente. Porque o ECA diz todos os direitos que a gente tem, mas a gente vive uma realidade que tem muita morte e eu acho que o primeiro direito que não pode ser violado é o direito à vida, porque senão a gente fica sem direito nenhum. Nós, jovens negros, estamos lutando por isso”.   “Sou moradora do Grajaú, negra, periférica, psicóloga e estudo sexualidade”, apresentou-se Elania Lima no centro do salão e das cadeiras formadas em roda. “Criança e adolescente não são o futuro. São o presente”, afirmou, e em seguida uma garota de gorro branco – Vitória – levantou a mão mas teve um ataque de riso de vergonha e devolveu a fala à Elania. “Violentar é inaceitável em qualquer idade, mas quando acontece com criança e adolescente isso acontece por meio de um abuso de poder do adulto. O direito ao desenvolvimento sexual saudável é o que é violado quando existe essa violência”, explicou: “A pior das violências, na minha opinião, é aquela que parece piada. A violência que nos faz rir é mais perigosa que a violência que nos faz chorar, porque a que nos faz chorar nos move para a denúncia”.   “O que fazer em caso de violência sexual?”, perguntou Lima. “Gritar socorro”, falou Kelly. “Contar para algum adulto que você confia”, opinou Mara. “Pedir ajuda para o disque 100”, disse Iarley, um dos mais novos presentes, que usava uma camiseta amarela quase o dobro do seu tamanho.   Cristiane Godinho, coordenadora do Serviço de Proteção à Criança e Adolescente Vítima de Violência (SPVV), que realizou a atividade em parceria com o CRP SP, distribuía um zine informativo. “No nosso serviço o que mais atendemos são casos de abuso sexual intrafamiliar contra meninas”, conta. “É muito complicado porque muitas vezes a criança associa abuso a afeto. A gente atende a vítima da violência mas também a família toda, vemos a necessidade de atuar em cima do contexto”, expõe.   “Atendemos inclusive o agressor”, relata Godinho. “Óbvio que no primeiro momento prezamos pelo cuidado e pela preservação da criança”, pondera, e esclarece que a abertura para que o autor da violência também possa procurar aquele espaço vem do entendimento que muitas vezes o ato está ligado à reprodução de comportamentos. “As pessoas às vezes querem simplesmente punir. Ok, podemos punir. O juiz determina uma pena, ele vai preso. Ok. E quando ele sair? Vai estar transformado para melhor passando pelo sofrimento de uma prisão?”, questiona.   Para Cristiane, não é fácil falar do ECA. “Ele é necessário, a partir dele temos muitos avanços que foram conquistados para a garantia de direitos das crianças. Mas precisamos ter formação dos nossos profissionais, trazer ele para a prática”, reflete. “É um documento fundamental, mas a garantia de direitos não acontece só no papel”. Segurando cartazes de “Não se cale” e “Diga não à violência”, os participantes da atividade fizeram um cortejo até uma praça próxima, ao som da bateria do CJ Kagohara.   Resistência à violência de Estado   “Levaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos pais, nossos avós, nossos bisavôs e tataravós / (...) Foram mortos pelas mesmas mãos que mudam de corpo, Mão do mando de gente que tem as leis, o dinheiro e as armas a seu favor. / É a mão do capitão do mato, que está atrás de cada homem fardado / É mão de gente que dá nome a avenidas e estradas que atravessam essas terras. / Mas lembrem-se: foram nossos filhos que morreram indigentes, sem a proteção das leis e sem a satisfação do dinheiro”. O poema “Apelo” é de Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, que reúne – desde a chacina de 2006 em São Paulo – familiares vítimas da violência estatal. “Mesmo que me aprisionem com as leis / Não podemos ter medo / Não podemos ter medo da bala / Não podemos ter medo do açoite / Eles não vão viver alimentados do meu medo”.   Foi com o intuito de debater a violência dessas “mesmas mãos que mudam de corpo”, seus efeitos psicológicos e as contribuições da psicologia para o seu enfrentamento que foi lançada pelo CRP SP, em outubro de 2015, a Campanha Estadual de Direitos Humanos: Violência de Estado ontem e hoje - da exclusão ao extermínio.   “Desigualdades sociais e políticas, presentes nas mais diversas relações, tanto na esfera pública quanto na privada, são potenciais geradoras de sofrimento (sobremaneira o sofrimento psíquico)”, narra o folder de apresentação da campanha, reiterando a defesa dos Direitos Humanos como “um dos princípios básicos de nossa ciência e profissão”. A psicologia, por ser comprometida com a dimensão relativa da experiência subjetiva do sofrimento humano, tem, de acordo com o CRP SP, “legitimidade para apontar o modo como o Estado por meio de suas ações garante ou viola Direitos Humanos e os efeitos desse processo”.   Foram organizadas visitas institucionais a unidades da Fundação Casa de São Paulo, entre 2015 e 2016, para conhecer e refletir a prática da psicologia dentro do sistema socioeducativo paulista. Em visitas a 27 unidades, foram entrevistados 88 profissionais. A conversa com adolescentes foi permitida apenas em 13 unidades (48%) e em condições restritivas, como por exemplo com a presença do gestor ou com jovens escolhidos pelos gestores.   “Os adolescentes fizeram denúncias quanto ao espaço físico, alimentação insuficiente, simulações de bom tratamento na presença dos fiscais do CRP SP, pedidos para que os fiscais retornassem com a Defensoria Pública e, até mesmo, questionaram o que os fiscais do CRP SP fariam para ajudá-los”, resume o Caderno de Debates a respeito das visitas, destacando ainda que em duas unidades (uma feminina e outra masculina), houve detalhados relatos de torturas e de medicação psiquiátrica contra a vontade.   Entre outras ações realizadas pela campanha estão debates e a organização do Prêmio Marcus Vinícius de Psicologia e Direitos Humanos. “Realizamos eventos que possibilitaram a discussão da psicologia diante das diferentes expressões da violência, incluindo o debate sobre as experiências subjetivas, consequências da abordagem e da letalidade policial executada de forma racializada”, conta Maria Orlene Daré, da Comissão de Direitos Humanos do CRP SP. A atenção especial nesses debates foi, na opinião de Daré, sobre a prática da/o psicóloga/o ao acolher o sofrimento daqueles que vivenciaram ou sofreram a violência de Estado, “em especial aquele sofrimento produzido pelo racismo institucional e pelas atitudes discriminatórias identificadas na pouca qualidade nos atendimentos dos serviços públicos”.   Maria Orlene destaca, ainda, as inspeções realizadas em conjunto com outras entidades em locais de privação de liberdade, “tais como as efetuadas no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e na Ala de Medida de Segurança”. Além da visibilidade às situações de violações dos Direitos Humanos, os relatórios resultantes das inspeções nesses espaços permitem, na visão de Orlene, enviar as denúncias de forma sistematizada aos órgãos competentes. “Acredito que isso pode resultar em uma significativa redução nas violações, bem como auxiliar na construção de políticas públicas”, reflete Orlene.   No que diz respeito à prática profissional, Maria Orlene acredita que inspeções apontam “um cenário de desafios, na medida em que os recursos da psicologia concedem aos profissionais o saber e o conhecimento teórico sobre as marcas subjetivas e os efeitos psicológicos decorrentes das violações”. Para ela, “é esperado que a/o psicóloga/o seja um ponto de resistência e exerça de forma ética e incondicional a defesa dos direitos e da dignidade humana. E que tenha uma prática voltada à compreensão do ser humano na sua condição histórica, emocional, social, se contrapondo a qualquer ação de caráter punitivo que possa ocorrer”.   O Prêmio Marcus Vinicius de Psicologia e Direitos Humanos foi lançado pouco tempo depois em que o psicólogo e professor, figura histórica na luta antimanicomial e na construção de uma psicologia comprometida com a justiça e a igualdade, foi assassinado na Bahia. Um dos idealizadores das campanhas de Direitos Humanos no Sistema Conselhos, Marcus Vinicius dá, agora, o nome ao prêmio que integrou a campanha estadual, com a finalidade de estimular a produção de artigos na área da psicologia a respeito da violação de direitos praticada pelo Estado, no passado e no presente.   “Para o CRP SP, a participação das/os psicólogas/os e dos estudantes foi muito gratificante”, revela Orlene, para quem “os trabalhos apresentaram, em sua grande maioria, uma leitura crítica sobre a realidade, problematizando a postura e a prática do profissional diante da violência de Estado e ações efetivas para sua compreensão e enfrentamento”.   Jornal PSI, Nº 188