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O que está acontecendo no Sistema Prisional brasileiro?


Publicado em: 21 de outubro de 2016
Créditos: CRP SP
Fotos: CRP SP

No estado de São Paulo, em menos de um mês, contabiliza-se mais de 6 unidades prisionais onde presos fugiram, pessoas foram feridas e prédios foram depredados e incendiados.   Um dos motins ocorreu em 17/10/16, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) Franco da Rocha I, local destinado ao tratamento de pessoas com transtornos mentais em conflito com a Lei. Segundo a Folha de S.Paulo, o motim foi motivado pelo fato da direção do hospital ter cortado cigarros aos internos.   Os HCTPs são destinados a sujeitos presos em cumprimento de medida de segurança e tratamento. Considera-se o cumprimento das medidas de segurança aos sujeitos qualificados como inimputáveis ou semi-inimputáveis, indivíduos que têm a instauração de “incidente processual de insanidade mental”.  Segundo o dispositivo do Código de Processo Penal, indica que um médico psiquiatra deve avaliar a capacidade e potencialidade do sujeito acometido por algum “distúrbio mental” de avaliar o dolo e a culpa, ou seja, respectivamente, a capacidade de compreender e desejar o fato considerado delito, bem como, o de prever a sua ocorrência e de tentar evitá-lo. Neste contexto, a partir do procedimento da lei, essas pessoas não podem receber uma pena de prisão, mas sim de medidas de tratamento compulsório.   A lógica de privação de liberdade, medicalização e vigilância constante são práticas balizadas em conceitos como periculosidade, consolidados por criminólogos positivistas que os classificam como “anormais”, sendo que a anormalidade moral torna-se um dispositivo demarcador identitário para quem tem tendências criminosas, classificando-os segundo sua disponibilidade futura para o crime.   Historicamente, esses dispositivos da periculosidade e da classificação dos “anormais” foram forjados em íntima relação com as teorias racistas no campo do Direito Penal. No Brasil pós-escravidão, a criminologia da Escola Positiva teve por embasamento ideias lombrosianas que contribuíram com o racismo científico, o qual define características físicas e psíquicas herdadas dos ancestrais para justificar práticas repressivas e de controle social. Essas noções continuam ordenando muitas das teorias criminológicas da atualidade, bem como, práticas repressivas e preventivas no campo da segurança pública e do sistema penal como um todo.   Apesar da condição do preso comum e do sujeito em medida de segurança ser juridicamente diferente, a lógica que embasa o encarceramento em massa é a mesma, com a exceção de que o sujeito enquadrado ao diagnóstico de periculosidade recebe a pena de prisão perpétua, pela constituição das condições dos HCTPs desembocar em precariedade física e estrutural, não havendo nenhum tratamento condizente com o conceito de saúde pública brasileiro. O tratamento ofertado por essa instituição se enquadra em uma lógica medicalizante, propondo a contenção química, o uso excessivo de medicamentos, para a ordenação e manutenção do espaço. Acontecem extensas violações de direitos humanos nesses espaços, conforme o Relatório de Inspeções da Campanha Estadual de Direitos Humanos do CRP SP demonstra, além disso, ocorre que não se encontra nesse modelo de cuidado os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ocasionando um ponto permanente de interrupção na desinstitucionalização do país.   O processo de fechamento de leitos psiquiátricos no estado de São Paulo é lento e insuficiente, além de ocasionar mais sofrimento às pessoas que já estão em sofrimento psíquico, seja ele decorrido das condições de vida do sujeito, seja ele advindo do uso abusivo de álcool e outras drogas. Neste aspecto vale relembrar o Censo Psicossocial de 2014, produzido pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, encontrou um número estarrecedor de óbitos entre os moradores de Hospitais Psiquiátricos da região. A quantidade de moradores de Hospitais Psiquiátricos, isto é aqueles que estão internados por mais de um ano no manicômio, aumentou de 2008 para 2014 em 1910 leitos, o que por si só já sugere a desobediência à Lei 10.216, que prevê o fechamento dos leitos psiquiátricos desocupados imediatamente. No entanto os números conseguem ser ainda mais assustadores, pois desta diferença de quase duas mil pessoas internadas, 1170 morreram. Portanto, além de aumentar as internações indevidas em manicômios o Estado ainda arcou com a morte de 1170 pessoas por escolher este modelo de cuidado.   Há dados de pesquisadores da Justiça Global mostrando que atualmente temos aproximadamente 44% de presos provisórios no Brasil, sendo que 80% das prisões são em decorrência de pequenos crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas (atualmente são 1/3 da população prisional). Muitas pessoas em sofrimento psíquico têm sido presas e lhes são imputadas medidas de segurança e tratamento; alguns ficam por vários anos aguardando vagas nos Centros de Detenção Provisória superlotados para enfim migrar para os Hospitais de Custódia e Tratamento, muitas vezes, sem nenhum tipo de tratamento. Além disso, vemos que as condições terapêuticas nos hospitais de custódia estão longe do ideal e reproduzem a lógica prisional/manicomial com a primazia da segurança em detrimento do tratamento à saúde.    De acordo com a Lei 10.216/2001, a internação somente deve ser determinada e mantida pelo tempo necessário ao cuidado do sujeito, porém isso deve ocorrer após o esgotamento dos recursos extra-hospitalares e então, caso não se mostrem eficazes, recorrer à internação, que deve ser encaminhada nos próprios serviços comunitários, os Centros de Atenção Psicossociais e quando não couber mais aos CAPS encaminhar para os Hospitais Gerais. Conforme preconiza a legislação brasileira, o cuidado integral e cotidiano deve realizar-se em serviços extra-hospitalares da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (residências terapêuticas, CAPS, ambulatórios, centros de convivência, entre outros), pois ela foi constituída justamente para conduzir o modelo de saúde mental preconizado e em acordo com os princípios do cuidado integral e em liberdade, equidade e universalidade do Sistema Único de Saúde.   Em 2014, o Ministério da Saúde institui a Portaria n° 94, de 14 de janeiro de 2014, que institui o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, no âmbito do SUS, além do seu financiamento com a Portaria n° 95. Esta medida está condicionada a adesão e aplicação dos estados da federação e depende também da RAPS para ofertar o suporte necessário para a aplicação desta medida, o que significaria a diminuição do fluxo de entrada no sistema prisional e o cuidado preciso às pessoas em sofrimento psíquico. Em outros estados como Goiás e Minas Gerais, é exatamente o que ocorre, haja vista o cuidado ofertado aos “loucos infratores” como os programas PAILI-GO (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator) e PAIPJ-MG (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário), que foge à lógica manicomial, propondo e conduzindo Políticas de Segurança Pública alinhadas com a legislação e com a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.   Entre 1992 e 2012, a população carcerária bra¬sileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: recrudescimento de 380% (DEPEN). No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 30% (IBGE). Com isso, vemos a evidência de uma política de encarceramento em massa e criminalização da pobreza, que apesar dos avanços legislativos na área de saúde mental, opta-se por investimento de políticas de exclusão e pelo encarceramento em locais que são verdadeiras masmorras medievais, que com a superlotação produz um ambiente caótico, que caracterizam um atentado a vigilância sanitária, produzindo mais sofrimento psíquico e segregação social.              Faz-se urgente e necessário o debate sobre a reforma penitenciária no estado de São Paulo e o aprofundamento das discussões perpassando caminhos da realidade social brasileira e dos modelos de cuidado que se produziu e construiu até a presente data. É imprescindível que o debate não se perca nas disputas da lógica privativista, mas que transcorra sobre as crescentes e alarmantes violações de direitos humanos produzidas pela lógica do Estado Penal se conduzindo até o Estado de Direitos construído pela Constituição Brasileira. Convocar o Sistema de Justiça para o lado da população, de forma a legitimar juridicamente os direitos tão duramente conquistados e assim com unidade trabalhar pela garantia dos avanços das Políticas Públicas e da construção de uma sociedade verdadeiramente mais justa e igualitária.